Para psicóloga, Cézar é a promessa de dignidade do prefeito de O Bem Amado

Felipe Pinheiro

Do UOL, em São Paulo

  • João Cotta/ Divulgação / TV Globo

    Cézar comemora a vitória no "BBB15"

    Cézar comemora a vitória no "BBB15"

"Eu, Odorico Paraguaçu, vou acabar com essa iniquidade, essa miserabilidade, essa desumanidade e por que não dizer essa vergonhosidade". Em um dos discursos de eliminação do "BBB15", o apresentador Pedro Bial disse que, se não existisse, Cézar Lima precisaria ser inventado – e ele já havia sido em 1973, apenas para citar um exemplo, no papel de Paulo Gracindo na novela "O Bem Amado", de Dias Gomes. Guardadas as devidas proporções, o caubói vencedor da última edição do "Big Brother Brasil" faz lembrar o político canastrão em razão do fascínio provocado pelo personagem ao arrastar multidões em seus comícios com a promessa de construir um cemitério na cidade de Sucupira, e não pela moral condenável do candidato a prefeito na ficção.

Cedoc/TV Globo
Cézar, do "BBB15", é versão atual de Odorico Paraguaçu, da novela "O Bem Amado", diz psicóloga
Humilde e com uma linguagem rebuscada, o paranaense de Guarapuava (PR) transformou um reality show em seu palanque mais eficaz e, assim como prefeito de "O Bem Amado", que também não tinha o menor pudor em inventar palavras, caiu no gosto da maioria do público que o designou como "a voz do povo", lema do personagem no folhetim, ou melhor dizendo, como o merecedor do prêmio de R$ 1,5 milhão.

"Seu discurso é político, direcionado à massa, para quem Cézar se define como alguém 'de coração puro e verdadeiro', que 'não faz conchavos'. Em tempos de insatisfação com a política, que vive uma das piores crises ética e de conchavos para absurda corrupção, Cézar se define como o representante do povo, alguém para representar e restituir o bem e a dignidade, uma versão atual de Odorico Paraguaçu", analisa a psicóloga cognitivo-comportamental Mara Lúcia Madureira.

Dono de um vocabulário peculiar, Cézar tornou célebre neologismos que usava com mais frequência, como "estrogonoficamente", "estrodôntico" e "abestinadamente", em frases não raras vezes incompreensíveis pela combinação de palavras reais com inventadas. Segundo a especialista, suas expressões conferem "um tom professoral ao discurso e faz render alguma credibilidade", criando identificação com grande parte do público, que, ainda conforme a especialista,  "não dispõe de crítica refinada para perceber o poder de influência de uma fala que alterna simplicidade e afetação da linguagem".

As características apresentadas pelo estudante de direito, avalia o psicólogo e professor Nelson Pedro Silva, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), remetem a um perfil específico pesquisado pelo filósofo e sociólogo Theodor Adorno, da Escola de Frankfurt, em seu estudo sobre as personalidades da sociedade norte-americana. Se trata de um tipo de perfil convencional, que não questiona estereótipos enraizados na cultura, como o de que toda loira é burra, orientais têm genitais pequenos ou de que homossexualidade é doença, entre tantos outros exemplos que refletem padrões tradicionalmente aceitos pela sociedade. A representação de Cézar deste modelo, explica o professor, ajuda a compreender seu grande apelo popular.

"Esse perfil representa o sujeito médio da população brasileira. O fato de ele aceitar acriticamente esses estereótipos o leva a se conformar com os valores da decência e da boa educação, e não é o tipo de personalidade que age de uma maneira violenta. Isto não quer dizer que ele irá achar que homossexualidade sugere doença, mas se a cultura diz que é desta forma ele acaba adotando essa ideia", afirma Nelson.

A trajetória do jovem religioso e filho de pais analfabetos, que não se acovardou diante de uma situação financeira precária e viu nos estudos a possibilidade de melhorar a situação da família, reflete um ideal de superação apreciado pelo público. "Ele representa, para a maioria dos telespectadores, o modelo idealizado de ascensão e sucesso social por seus próprios esforços", compreende Mara Lúcia.

Ele é o típico representante do nosso cidadão de classe média, aquele que ascendeu socialmente há pouco tempo e teve acesso a um saber erudito, mas que faz uso desse saber de maneira totalmente desarticulada. Pode soar como algo inusitado, estranho, mas para a maioria da população demonstra alguém que saiu de uma condição desfavorável e que conseguiu fazer uma faculdade. Ele compartilha do sonho do cidadão médio brasileiro Nelson Pedro Silva, psicólogo e professor da Unesp

"Ele é o típico representante do nosso cidadão de classe média, aquele que ascendeu socialmente há pouco tempo e teve acesso a um saber erudito, mas que faz uso desse saber de maneira totalmente desarticulada. Pode soar como algo inusitado, estranho, mas para a maioria da população demonstra alguém que saiu de uma condição desfavorável e que conseguiu fazer uma faculdade. Ele compartilha do sonho do cidadão médio brasileiro e aí é que ganha a classe C, a principal audiência do 'BBB'", avalia Nelson.

Se por um lado o sucesso de Cézar indica o ideal de representação do brasileiro de classe média, por outro, analisa o professor de sociologia Paulo Niccoli Ramirez, da Fespsp (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), também aponta para a falência da fórmula da versão brasileira do "Big Brother" – não é à toa que última edição procurou retratar "gente comum" –, que há mais de uma década aposta em um padrão desarmônico com a realidade da maior parte da população, como um elenco de participantes sarados e que visa a um lugar ao sol no universo das celebridades. O caubói reforça alguns traços desse padrão, como o corpo musculoso, mas demonstra um tipo original.  

"Nossa sociedade é extremamente conservadora, e veja a redução da maioridade penal e o próprio Congresso Nacional como um reflexo disso. Esse personagem vem mostrar certo conservadorismo e revela também um velho modelo de programa que já está esgotado, mas se mantém pelos patrocinadores. O 'Big Brother' vive intensamente da edição, que serve para criar um enredo para o telespectador. Os personagens não têm o que dizer. É a sociedade do espetáculo, o que vale não é o conteúdo, a reflexão, mas a imagem. Esse personagem trouxe algo novo, espontâneo – e não tão enlatado –, foge das velhas fórmulas, do perfil padrão de participantes. É uma resposta da sociedade para a Globo, que trazia personagens não condizentes com a maioria da população", afirma o sociólogo.

Perfil de vencedor
O favoritismo do paranaense, confirmado nesta terça com a vitória do caubói, também deve ser analisado por outros aspectos. De acordo com Nelson, Cézar apresenta uma confluência de quase todas as características mais marcantes de cada um dos catorze campeões do "BBB".

Reprodução/TV Globo
Cézar lembra, entre outros vitoriosos do "BBB", o caubói Fael, vencedor do "BBB12". Além do perfil caipira, ambos não se envolveram em confusões e eram mais introspectivos na casa
"Ele é considerado um sujeito brega e feio, mas também é considerado como uma pessoa atraente fisicamente, mais ou menos o que aconteceu com Bambam, Dourado, Rafinha e o Fael. Todos esses sujeitos eram pessoas privilegiadas do ponto de vista externo. Ele tem um corpão, é branco, loiro, preenche o arquétipo esperado pelas mães", destaca. "Outro aspecto é o seu jeito alegre, assim como o do Bambam, Dhomini e a Maria. A população gosta muito desse jeito alegre e meio infantil", reflete o psicólogo da Unesp.

As semelhanças com os antigos vencedores não terminam por aí. Para o professor, Cézar reproduziu a simplicidade de Vanessa, Rodrigo Caubói e Jean Willys, foi coerente como Fernanda, introvertido como Rafinha e excluído da casa como Marcelo Dourado e Diego Alemão. Soma-se a tantos elementos favoráveis seu carisma incontestável, decorrente de sua espontaneidade.  "Ele dava boa noite para o Bial e para a população brasileira, e aí os outros participantes se tocaram e começaram também a dar boa noite para o telespectador. Ele é espontâneo como o Bambam", analisa.

Mesmo repetindo específicas e características manjadas de outras edições, Cézar tem seu mérito na conquista do próprio eleitorado, ou melhor, do grande público. "Ele não foge dos padrões, mas tenho a impressão de que o Cézar é o personagem que representou melhor quem é o povo brasileiro ou a imagem sonhada pela população. Gostamos de pessoas ingênuas, religiosas, simples, espontâneas e doces, daquelas que não se metem em confusão. Cézar foi o que veiculou melhor a ideia de ter sido verdadeiro e o 'BBB' funciona assim, as pessoas se identificam com quem é autêntico", aponta Nelson.

"Todo mundo odeia o... Cézar"
Da desaprovação dos seus colegas, Cézar soube como transformar a rejeição dos companheiros em um trunfo junto ao público. Com uma conduta descrita por ele mesmo como "retilínea", se manteve distante das intrigas da casa e soube como manter a promessa de ser o representante do telespectador no reality show.

Preferiu o isolamento a combinar votos e evitou desavenças com tantos adversários que o importunavam, como aconteceu quando o pressionaram para que contasse seu segredo (revelado dias depois, que segundo ele não passava dos dons que havia recebido do Espírito Santo).

Ele interagiu sim com os participantes, mas bem abaixo do esperado e, ao mostrou-se blindado aos 'conchavos' e, avesso às discussões, fez-se parecer, aos espectadores externos, um sujeito de integridade irretocável. Seu foco foi na vitória do jogo, não na aprovação dos brothers Mara Lúcia Madureira, psicóloga cognitivo-comportamental


"A grande sacada de Cézar parece ser justamente o modo paradoxal de se relacionar com os macro e microgrupo relacionados ao jogo. Ele interagiu, sim, com os participantes, mas bem abaixo do esperado, mostrou-se blindado aos 'conchavos' e, avesso às discussões, fez-se parecer, aos espectadores externos, um sujeito de integridade irretocável. Seu foco foi na vitória do jogo, não na aprovação dos brothers", analisa Mara Lúcia. "Se fez um jogo, fez para o público. É como se dissesse, 'olha, gente, lutem pelo que vocês sonham porque eu estou mostrando que é possível sair de uma situação de miséria e conseguir obter o sucesso'. É impressionante. Não sei se ele tem consciência do poder que obteve. Se tiver, sairá candidato e ganhará o cargo", aposta Nelson.

Reprodução
Cézar sofreu bullying na casa assim como o astro mirim do seriado "Todo Mundo Odeia o Chris", analisa psicólogo
Sem criar vínculos mais intensos com nenhum dos participantes, se voltou para si mesmo, exercendo atividades individuais como fazer academia, rezar em voz alta e travar diálogos com uma estátua que recebeu o apelido de Fidêncio. Todos viam e comentavam o comportamento controverso do caubói e o tornaram bode expiatório, uma vez que precisavam definir a cada semana quem seria a vítima a enfrentar o paredão.

Autor dos livros "Indisciplina e Violência nas Escolas" e "Indisciplina e Bullying: Soluções ao alcance de pais e professores", Nelson Pedro compara a identificação do telespectador com Cézar em relação à empatia despertada pelo personagem principal do seriado "Todo Mundo Odeia o Chris", inspirado na vida do comediante Chris Rock e que mostrava situações, em uma roupagem cômica, nas quais o único adolescente negro da escola sofria piadas e agressões dos colegas.  "O Chris despertava a empatia em nós e todos o detonavam. O público acaba se apaixonando porque ele é objeto de bullying", declara.

"A falta de sociabilidade com os brothers pode ter sido um fator decisivo para o favoritismo de Cézar com o grande público, mas não foi o único. Por um lado, a baixa interatividade com os participantes da casa o protegeu de conflitos e o expôs às críticas dos colegas. Por outro, formou uma aliança com o público que, ao dirigir o discurso aos 'juízes' do programa, suplicar-lhe preces e conjugar os verbos 'conquistar' e 'vencer' na primeira pessoa do plural, conferiu-lhes a sensação de participantes ativos em seu papel de competidor", considera a psicóloga.

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