Índia escalada para "Dois Irmãos" fala sobre cenas intensas: "Uma loucura"

Giselle de Almeida

Do UOL, no Rio

  • Arquivo pessoal

    Sílvia Nobre Waiãpi estará em "Dois Irmãos"

    Sílvia Nobre Waiãpi estará em "Dois Irmãos"

Desde que começou a escalar o elenco da minissérie "Dois Irmãos", que estreia na Globo no segundo semestre, o diretor Luiz Fernando Carvalho queria uma índia de verdade para o papel de Domingas. A escolhida é Sílvia Nobre Waiãpi, de 39 anos, nascida numa tribo do Amapá, mas que não estava tão longe assim do Projac. Há 25 anos morando no Rio de Janeiro, a atriz ganhou o papel graças a uma entrevista que deu no "Programa do Jô" ao tornar-se a primeira mulher indígena a entrar para o Exército brasileiro.

"Quando começaram a pré-produção da minissérie, procuravam uma indígena pra fazer teste e não encontravam. Aí o produtor de elenco lembrou da minha entrevista. Quando me chamou pra conversar é que ele descobriu que já havia feito outros trabalhos na casa", conta ela, que já atuou em produções como "A Muralha", "Uga Uga" e "Bang Bang" na TV. 

Sílvia ficou encantada com o método de trabalho do diretor, conhecido por exigir bastante de seus atores desde a intensa fase de preparação - etapa que começou em outubro, três meses antes do início das gravações. É durante esse período que Carvalho começa a "descascar" seus atores de vícios e posturas desnecessários para o projeto.

"Ele é muito criativo e detalhista. Consegue tirar sentimentos que você nem sabe que tinha dentro de você. Teve uma gravação em que tiveram que chamar um enfermeiro porque acharam que eu estava passando mal. Chorei muito de emoção, foi uma loucura. Era uma cena de um encontro importante, que não tinha nem fala. Eu sucumbi, foi de despedaçar a alma", analisa. 

Arquivo pessoal
Com as atrizes Eliane Giardini e Juliana Paes nos bastidores de "Dois Irmãos"

Na trama, inspirada no livro homônimo de Milton Hatoum, Sílvia é Domingas, empregada na casa dos pais dos gêmeos Omar e Yaqub, vividos por Cauã Reymond. Após ser estuprada pelo primeiro, ela engravida e dá à luz Nael, que será interpretado por Irandhir Santos em outra fase da história. Mas ninguém sabe a identidade do pai da criança, já que ela nutre um amor platônico por Yaqub.

"Ela é obrigada a perder a identidade indígena. Essa perda da identidade é o que mais machuca. Se as pessoas perceberem isso, já valeu a pena. Se nós respeitamos a cultura do não-indígena, que ele também respeite nossa maneira de ver o mundo. Tomo água gelada, uso telefone celular, mas continuo sendo indígena. Nessa questão eu me identifico com ela. Mas não nas atitudes, ela vai viver e se submeter a muita coisa. Não sou a Domingas. Ela não teve coragem, eu tive", compara.

Preconceito na infância

Adotada aos três anos por uma família de Macapá, Sílvia começou a estudar aos sete. Mas diz que encontrou bastante preconceito. "Quando fui pra escola encontrei uma realidade totalmente diferente. Passei a infância implorando às professoras para hastear a bandeira na hora do hino nacional, mas só as crianças brancas podiam. As pessoas têm uma ideia pré-concebida, existe uma barreira muito grande. Não adianta dizer que é brasileiro se te impedem de ser brasileiro. Mas eu prometi pra mim mesma que hastearia aquela bandeira. Na abertura dos Jogos Mundiais Militares, o mundo inteiro viu, foi muito emocionante", afirma.

Aos 14 anos, ela fugiu para o Rio de Janeiro, porque queria estudar. Sem conhecer a cidade, chegou a morar na rua até conseguir um emprego como vendedora de livros. Antes de vender, no entanto, ela devorava cada um. O gosto pela literatura encurtou seu caminho até as artes em geral: após ingressar num grupo de atores, animou-se a entrar para a faculdade de Artes Cênicas. "Não conhecia ninguém e foi muito difícil. A solidão e a fome te impulsionam a fazer muita coisa. Eu poderia ter me achado coitadinha e continuado à mercê de esmola, mas eu não me via assim. Resolvi estudar e vender livro. Fui me aperfeiçoando", lembra ela, que se formou aos 24 anos.

Depois disso, começou a trabalhar na Globo no departamento de figurino como aderecista. Os trabalhos como preparadora de elenco de "A Muralha" e de pesquisadora de texto para o autor Carlos Lombardi em "Uga Uga" também lhe renderam papéis como atriz.   

Divulgação/Exército
Ela é a primeira mulher indígena a virar militar no Brasil

Foi nessa época, aliás, que ela também virou atleta. Depois de dois meses treinando no Vasco da Gama, conseguiu se destacar e ganhou uma de bolsa de estudos para cursar a faculdade de Fisioterapia. Mergulhou de vez nos estudos para prestar concurso para as Forças Armadas e, aos 35 anos, entrou para o Exército. Hoje é primeiro-tenente e trabalha diariamente com terapia intensiva e respiratória na unidade de terapia intensiva do hospital militar.

"Não quero sair do hospital nunca. Esse trabalho me deixa feliz, de alma lavada. Pra outras pessoas pode ser um sofrimento ver alguém morrer, mas pra mim é uma alegria lutar pela vida. É uma dádiva, eu não posso perder isso", afirma ela, que é avó de uma menina de oito anos e mãe de Ydrish, de 26 anos, cursa Farmácia, Tamudjim, de 24, faz Biomedicina, e Yohana, de 22, que estuda Relações Internacionais.

Arquivo pessoal
Sílvia com os irmãos na aldeia, no Amapá

Todos os anos, nas férias, Sílvia volta a sua aldeia, que tem cerca de 1.200 índios, para visitar os pais e os 14 irmãos. "O povo faz festa quando estou lá, todo mundo vai me ver. A gente dança e toma caxiri (bebida tradicional, feita à base de mandioca)", conta ela, que reafirma o orgulho de sua origem. 

"Eu respeito a cultura não-indígena, uso roupa normal, falo português pra me comunicar, mas não esqueço daquilo que eu sou. Fazemos questão de preservar nossa cultura. Não temos energia elétrica, usamos roupas especificas nos rituais, nas nossas danças. Vivemos uma vida tradicional", conta.

Veja também

UOL Cursos Online

Todos os cursos