Ator de Spock disse que odiava blá-blá-blá pseudo-científico da série

Ana Maria Bahiana

Colunista do UOL

Era o final da primavera norte-americana de 2009, e a Paramount estava lançando a re-imaginada franquia Star Trek com o primeiro filme escrito e dirigido por J.J.Abrams. Peças dos cenários da série original e dos filmes dos anos 1980 haviam sido tiradas dos galpões para adornar o grande salão de entrada do gigantesco cinema privado do estúdio. E Leonard Nimoy, que em geral preferia se resguardar no aconchego doméstico, compareceu e conversou com um pequeno grupo de jornalistas.

Estava animado, tranquilo, bonachão, rindo muito com as lembranças de seus tempos de ator em princípio de carreira, as muitas aventuras da Enterprise, o trabalho com J. J. Abrams e Zachary Quinto  - "um ator formidável e uma pessoa ótima", ele me disse.

Seria minha última entrevista com ele. Leia:

UOL - Olhando para sua vida e carreira até agora, você compreende melhor sua relação com Spock? O quanto ele e você tem em comum, principalmente nas questões espirituais que aparecem com tanta frequência no cânon de Star Trek?

Leonard Nimoy - Há um aspecto circular para essa narrativa. Eu trouxe esse elemento para "Star Trek" muitos anos atrás, no final dos anos 1960. Na verdade eu não sabia quase nada sobre espiritualidade a não ser a lembrança do que eu vivi e senti quando fui a uma cerimônia religiosa numa sinagoga judia ortodoxa. Eu devia ter uns oito anos. As pessoas não estavam rezando do modo como eu estava acostumado, estavam cantando e entoando palavras e gritando… Eu não sabia o que era aquilo mas fiquei… maravilhado, um pouco assustado… era muito forte. Era uma benção e eu não, na verdade não devia ter visto, porque eu era ainda muito criança e meu pai me disse para não olhar mas… eu sempre fui curioso…  e olhei. E aquilo nunca me deixou. Muito tempo depois eu soube que era a benção de Shekhina, que é o aspecto feminino de Deus, e durante a cerimônia Ela vem ao santuário abençoar a congregação, e inunda o lugar com uma luz muito forte que pode ser perigosa para quem não está preparado. Essa experência foi uma das mais importantes da minha vida e decidi incorpora-la a "Star Trek", trazendo a ideia para os produtores. Essa visão da energia como uma força espiritual nunca me deixou.

Qual sua relação com Spock?  Há um momento em que você se sentiu aprisionado por ele?

Sim. É complicado. É uma velha questão: você faz bem um personagem e um tipo de personagem e fica preso a apenas esse personagem. É uma bênção e é uma maldição. Pode ser um problema sério que impede que você faça outras coisas, que mostre ser capaz de muito mais além do que as pessoas estão acostumadas a ver. Por outro lado, se você se torna conhecido por um determinado estilo ou um determinado conjunto de habilidades, você diz aos diretores de elenco em que você pode ser útil. É uma garantia.

Armando Gallo/Divulgação Uma das coisas mais maravilhosas de "Star Trek" e de Spock é essa interação, são os comentários que recebo sempre de pessoas que não conheço sobre o impacto positivo da série e do personagem em suas vidas. Muita gente que hoje trabalha na área da ciência me diz que foi Spock que despertou o interesse delas pelo assunto Leonard Nimoy, ator e intérprete de Dr. Spock na série "Star Trek"
Para você foi mais benção ou mais maldição?

As duas coisas. Tive altos e baixos. O essencial é que desde que me tornei Spock e que "Star Trek" foi ao ar pela primeira vez em 1966, eu nunca mais tive que me preocupar em achar trabalho como ator. Antes disso eu estava sempre batalhando para conseguir trabalho e sustentar minha família, e sempre tendo que fazer algo mais para garantir a sobrevivência: eu entreguei jornais, dirigi taxi, vendi seguro, fui garçom… Uma vez que "Star Trek" foi ao ar, eu jamais tive que fazer nada disso. E me abriu portas para outros trabalhos como ator – dois anos em "Missão Impossível" depois que "Star Trek" foi cancelado. Muitos papéis diferentes em filme… Fiz papel de asiático, de sul americano, de europeu… Acho que depois que me viram como um vulcano acharam que eu era naturalmente eclético…

Como você se sentiu voltando a Spock depois que a série tinha saído do ar?

Eu me lembro do momento exato em que soube que voltaria a ser Spock. Eu fui ver "Star Wars" em uma das primeiras sessões, logo na estréia, e o cinema todo estava aos berros, torcendo, pulando… Eu pensei: "Humm… A Paramount vai me ligar em muito breve… [a Paramount é dona dos direitos de "Star Trek"]. E é claro que poucos dias depois meu agente recebeu um telefonema do estúdio. Eles reviveram a franquia, e fiquei muito feliz com isso. Eu jamais estive sem trabalho, e isso é por conta de Spock. Sou muito grato a ele.

Como é seu relacionamento com os fãs?

Como não ser grato a eles também? Uma das coisas mais maravilhosas de "Star Trek" e de Spock é essa interação, são os comentários que recebo sempre de pessoas que não conheço sobre o impacto positivo da série e do personagem em suas vidas. Muita gente que hoje trabalha na área da ciência me diz que foi Spock que despertou o interesse delas pelo assunto. É algo incrível saber que as vidas das pessoas tomaram um rumo melhor por causa do Spock.

Como você compara os Star Treks da era J.J.Abrams à série de TV e o primeiro ciclo de filmes?

Os efeitos [especiais] são melhores. Ah! São TÃO melhores…. Não é fantástico o que eles conseguem fazer hoje? Com a nova tecnologia? Os roteiros são melhores também. Uma coisa que me irritava na série sobretudo era o bla-bla-bla pseudo-científico, quando os personagens ficavam um tempo enorme parados falando de coisas que o público não tinha como entender, até porque era tudo inventado. Os roteiros agora são muito mais inteligentes. J.J. é um homem de muito talento, muito cativante, cheio de energia. Ele sabe o que faz.

Você se tornou um fã de pesquisa espacial depois de tantos anos como Spock?

Não me considero um fã de espaço ou de ciência, especialmente. Eu me interesso por drama, por histórias. O mais próximo que já estive do programa espacial foi quando convidaram o elenco para ir ver a apresentação do primeiro ôibus espacial, no deserto de Mojave. O primeiro ônibus espacial se chamava Enterprise, e a banda da Força Aérea tocou a música tema de Star Trek… Foi muito emocionante.

O que você sente quando olha para o espaço, à noite?

Espero que haja gente lá fora. Espero que haja muita gente pelo espaço afora e que nós possamos ser amigos algum dia. É um desejo sincero que tenho. Seria muito para este planeta saber que somos apenas um corpo celeste habitado entre muitos outros, e que podemos trocar ideias e informação com outras populações.

Qual a sua paixão atual?

Fotografia, que comecei a fazer nos anos 1970 e que se tornou algo muito importante para mim como meio de expressão. O primeiro livro de fotos que fiz chamava-se justamente Shekinah, e era um retorno à minha experiencia de criança. De Deus como uma energia feminina.  É um trabalho que abriu minha cabeça, me fez questionar muita coisa em nossa sociedade, em nossa estética, nas imposições do consumo… Descobri formas muito mais fortes de beleza através desse projeto.

O que você gostaria de deixar como seu legado?

Uma boa lembrança. Que as pessoas tenham algum carinho por mim, porque sempre dei o melhor de mim. Que eu tenha tocado as vidas das pessoas de um modo positivo.

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