Censura proibiu que "O Rebu" original fizesse crítica à corrupção policial
James Cimino
Do UOL, em São Paulo
Quando foi exibida a versão original da novela "O Rebu", em 1974, o Brasil vivia sob o regime militar e todas as produções televisivas, mesmo feitas fora do país, eram obrigadas a passar pelo crivo da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP).
Os militares viam especialmente as telenovelas como material subversivo, imoral ou "não condizente com os padrões vigentes da sociedade" e tentavam, por meio da censura, representar na TV um país que eles gostariam que existisse na vida real.
O UOL pesquisou no Arquivo Nacional, em Brasília, os apontamentos que a censura fez e os pedidos de mudança e veto à trama original, escrita por Bráulio Pedroso, cujo remake estreou nesta segunda-feira (14) na TV Globo e que narra a história de uma festa em que um dos convidados é encontrado morto.
Dentre as preocupações que o governo militar tinha com essa novela era o fato de ela ser uma trama policial. Após ler a sinopse enviada pelo então diretor de criação da emissora, Daniel Filho, os funcionários da DCDP escreveram que a novela estaria liberada contanto que respeitasse algumas determinações, entre elas a de que não poderia "servir de crítica a outros crimes até então não solucionados pela polícia e Justiça. Exemplo: caso tipo 'Ana Lídia' e 'Esquadrão da Morte'."
O caso Ana Lídia, especialmente, era um assunto que as autoridades queriam que caísse no esquecimento. Em 11 de setembro de 1973, a menina Ana Lídia Braga, de apenas sete anos, foi raptada, estrangulada e estuprada. Seu corpo foi encontrado em uma cova rasa na UnB (Universidade de Brasília).
Os principais suspeitos eram o próprio irmão da menina, Álvaro Henrique Braga, o filho do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid Júnior, o filho do senador Eduardo Rezende, Eduardo Eurico Rezende, e Raimundo Lacerda Duque, funcionário público viciado em drogas e alcoólatra.
Como o caso envolvia filhos de autoridades, os militares e a própria família da vítima resolveram abafar a história, que permanece não solucionada até hoje e que já foi tema do programa "Linha Direta - Justiça". Os acusados foram todos absolvidos por falta de provas, conforme reportagem publicada pelo jornal "Correio Braziliense" no ano passado quando o crime completou 40 anos.
Ainda no intuito de preservar a boa imagem da polícia, o documento da censura recomendava que "seria de bom alvitre (sic) de que em cada final de capítulo prevalecesse sempre o aspecto positivo da investigação" e que [a novela] "não poderá haver implicações de ordem sócio-políticas".
Já que a novela não podia fazer qualquer crítica social, o crime que ocorre durante a festa teria de ser passional. Para diminuir as desconfianças dos censores, o próprio Daniel Filho escreveu uma carta endereçada aos dirigentes da DCDP dizendo isso e garantindo que a história era uma trama "explorada à maneira das estórias (sic) de Agatha Christie".
Relacionamento pervertido
Outro aspecto que incomodou os censores foi o relacionamento homossexual entre o protagonista, o banqueiro Conrad Mahler (Ziembinski), e o jovem Cauê (Buza Ferraz).
O caso entre os dois personagens, no entanto, era o principal motor da trama, que motivava o assassinato de Silvia (Bete Mendes). Mesmo assim, os censores exigiram que o relacionamento não fosse explicitado e que Cauê fosse apresentado apenas como filho adotivo de Mahler. Mas, ao final da novela, não havia como esconder o óbvio.
No parecer nº 1177, em que foram analisados os vídeos dos capítulos 84 e 85, As censoras Myrtes Nabuco de O. Pontes e Hellé Prudente Carvalhêdo observaram que, próximo da reta final, o autor tendia a "caracterizar o relacionamento pervertido entre Mahler e Cauê". "Tememos que essa exploração se agrave, tendo em vista a aproximação do final da novela e o provável motivo para a explicação do crime."
O assassino
Sabe-se hoje que o verdadeiro assassino da versão original de "O Rebu" foi o dono da casa, Conrad Mahler, por ciúme de Cauê, que estava apaixonado por Silvia. No entanto, de acordo com um adendo explicativo da sinopse composto de quatro páginas, que fora enviado à DCDP, o assassino era outro.
Ao final do documento, há quatro "observações especiais". Uma delas diz que o assassino de Sílvia foi um advogado interpretado pelo ator Mauro Mendonça chamado Dr. Álvaro Rezende. Coincidência ou não, Álvaro é nome do irmão da menina Ana Lídia e Rezende é o sobrenome de um dos suspeitos de sua morte.
Outro documento encontrado entre os arquivos da censura de "O Rebu", um recorte da coluna de TV do jornalista Eli Halfoun, traz o seguinte título: "Bráulio muda o final do Rebu. Foi a censura".
Na nota, o colunista diz que o elenco da novela teve de se reunir para regravar às pressas algumas cenas do final da história e que outros trechos foram vetados, como um diálogo entre Conrad Mahler e o delegado interpretado por Edson França. O texto diz que o plano inicial do autor era fazer com que o personagem Boneco, um ladrão que entrou na festa de penetra e que era vivido por Lima Duarte, pagasse pelo crime no lugar do banqueiro.
A cena vetada pela censura seria aquela em que Conrad Mahler suborna o delegado para sair impune? Eis um mistério que nem a novela nem os arquivos da DCDP solucionam.