UOL vasculha arquivos da censura às novelas e mostra curiosidades

James Cimino

Do UOL, em Brasília

  • Divulgação/TV Globo

    Lima Duarte, o "capitão", e Paulo Gracindo, o "coronel", em cena de "O Bem-Amado" (1973)

    Lima Duarte, o "capitão", e Paulo Gracindo, o "coronel", em cena de "O Bem-Amado" (1973)

Motivo de orgulho nacional por seu sucesso aqui e no exterior e consideradas por outros como exemplo de falta de ousadia artística, as telenovelas brasileiras já foram vistas, aos olhos da ditadura militar, como material subversivo, imoral ou simplesmente "de abominável mau gosto".

No aniversário de 40 anos de "O Bem Amado", um dos folhetins mais politizados da TV brasileira, o UOL vasculhou os arquivos da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), em Brasília, para tentar resgatar um pouco do que foi perdido, cortado, alterado ou descartado pelos funcionários do órgão, que atuou durante 16 anos e tinha como função controlar tudo o que fosse veiculado na TV, no rádio e no teatro.

A ser publicada durante toda esta semana, a série de reportagens inclui reproduções de documentos oficiais e relatos de como atuavam os censores nos roteiros das novelas "O Bem Amado" (1973), "Fogo Sobre Terra" (1974), "Escalada" (1975), "Selva de Pedra" (1972 e 1986), "Roque Santeiro" (1975 e 1985), "Pecado Capital" (1975) e "Vale Tudo" (1988), a última a passar pelo crivo da DCDP.

Profissionais da televisão como José Bonifácio de Oliveira, o Boni, Aguinaldo Silva, Lauro César Muniz, Tarcísio Meira, Juca de Oliveira, Gracindo Jr. e Cristina Prochaska estão entre os que conversaram com a reportagem para relembrar os episódios.

Um dos casos trata da primeira versão da novela "Selva de Pedra", que teve sua sinopse modificada no meio da exibição, em 1972, para que não fosse cancelada ou sofresse mudança na grade horária, o que acarretaria em perda de audiência e patrocínio.

Os censores enxergaram uma relação de bigamia entre os protagonistas Cristiano (Francisco Cuoco) e Fernanda (Dina Sfat). Ele acreditava-se viúvo de Simone (Regina Duarte), que havia sofrido um atentado e sido dada como morta. Mas os censores não quiseram saber. Por pressão do órgão da ditadura, Cristiano então abandona Fernanda no altar e ela enlouquece.

Em entrevista por e-mail ao UOL, Boni garante que o público nem percebeu, graças à inventividade da autora Janete Clair.

"Não interessava à censura que as mudanças vazassem. Eles não queriam admitir publicamente a ação da censura. Para nós era melhor assim. O público não percebia nem reclamava, pois parecia um artifício de dramaturgia dos autores. Janete Clair era, entre os autores, a mais rápida e a que mais tinha jogo de cintura", lembra o superintendente de produção e programação da TV Globo na época.

Mesmo com toda a pressão, no entanto, os artistas e executivos das emissoras faziam questão de driblar os desmandos do regime. Boni contou ainda que sua função era "enrolar" os censores. "Quase sempre não cumpríamos o prometido e renovávamos as promessas. Eu era mestre em assinar documentos que não seriam cumpridos."

Mas não eram só questões morais ou políticas que paravam no crivo da DCDP. Houve episódios, devidamente documentados, em que a implicância beirava o surrealismo, como na discussão sobre o uso da palavra cocô na novela "Escalada", de Lauro César Muniz.

O laudo foi uma resposta à denúncia de um colunista do jornal carioca "A Notícia", que considerou a fala do personagem de Milton Morais, que padecia de fortes dores intestinais e pedia ao filho para "fazer cocô", de abominável mau gosto.

"[O personagem] usou a expressão considerada prosaica e que motivou críticas por se entender como abominável mau gosto ao termo fazer cocô. Registramos aqui e não nos passou despercebido; temos somente a esclarecer que se trata de um sinônimo, de largo uso, de aplicação já oficializada e que não fere sensibilidades, até as mais acuradas. Ainda mais [...] por se tratar de um personagem inculto e simplório, do qual não se pode esperar um vocabulário erudito", escreveram os censores, que, não sem antes gastar tempo e papel-ofício, acabaram liberando o uso do termo banal.

  • Arte/UOL

De olho na censura

Oficialmente extinta em 1988, ano da promulgação da nova Constituição após o fim da ditadura militar, a censura deixou como legado caixas e caixas que guardam roteiros de capítulos e sinopses de todas as novelas, séries e programas de televisão exibidos no período. Nada escapava. Nem mesmo os chamados enlatados de Hollywood.

Abertos ao público desde 1994, os arquivos se encontram hoje no Arquivo Nacional, em Brasília, e voltaram a atrair atenção após a divulgação da  Lei de Acesso à Informação, em maio de 2012, que obriga órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário a abrirem seus registros para consulta popular.

Em tempos de liberdade plena de expressão, a censura de antes ganhou ares mais brandos e funciona sob a forma de um dispositivo constitucional de controle de abusos chamado Classificação Indicativa, que é subordinado ao Ministério da Justiça.

Por meio dele, são as emissoras que se autoclassificam, ou seja, são os canais que se "autocensuram", conforme explica o presidente da comissão de anistia e secretário nacional de justiça, Paulo Abrão.

COMO PESQUISAR SOBRE CENSURA?

  • Divulgação/Arquivo Nacional

    Basta marcar horário pelo fone 0/xx/61-3344-8242; o Arquivo Nacional fica no Setor de Indústrias Gráficas, Quadra 6, Lote 800, em Brasília

"A classificação foi feita para substituir e se opor à censura. No nosso modelo são as emissoras que se autoclassificam. E os critérios são objetivos e limitados, levando em conta apenas a proteção psicosocial da criança e do adolescente. Tanto que esse mecanismo exclui os telejornais, por exemplo. Nesse caso o Estado age apenas como instrumento de supervisão coercitiva. Não proibimos que nada seja veiculado, contanto que seja no horário recomendado. Caso a classificação não seja respeitada, aplicamos multa. Não interferimos na obra, como se fazia no regime militar."

A professora da Universidade de São Paulo e diretora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom-USP), Cristina Costa, tem opinião diferente. Segundo ela, a Classificação Indicativa é, sim, um tipo de censura.

"A autocensura já é uma censura. Porque a censura é uma relação de poder. Então, quando a emissora se tolhe por medo de repressão ou mesmo de prejuízo econômico, ela está sendo controlada pelo Estado. Não acho que as pessoas não possam escolher o que vão ver na TV, mas isso deve ser feito por entidades organizadas pela sociedade civil, não por funcionários públicos que podem definir que um programa que eventualmente ataque o governo vá passar em um horário em que ninguém vai assistir", analisa.

Para a diretora do Obcom, há censura no Brasil desde o período colonial. Os órgãos de controle apenas mudaram de nome através dos tempos."A DCDP foi criada a partir do DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda] do governo de Getúlio Vargas. No período colonial quem cuidava disso era a Igreja Católica, pois havia uma preocupação com a disseminação do pensamento anti-cristão e reformista. Depois com a chegada da família real, em 1808, foi criado o Conservatório Dramático e Musical, que era um tipo de censura mais laica. Machado de Assis era um dos censores desse órgão. E Nelson Rodrigues e Gianfrancesco Guarnieri foram censurados no governo JK. Agora, isso de prender, bater e exilar artista foi privilégio apenas dos militares."

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