Censura mandou autora mudar "Selva de Pedra" no meio por enxergar bigamia na trama
James Cimino
Do UOL, em Brasília
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Reprodução
Regina Duarte, Francisco Cuoco e Dina Sfat: o triângulo amoroso de "Selva de Pedra" (1972)
A história mais famosa que se conta sobre a novela "Selva de Pedra" (1972), de Janete Clair, foi que ela alcançou cem pontos de Ibope em seu 152º capítulo. O que pouca gente sabe, no entanto, é que a censura obrigou a autora Janete Clair a mudar a história no meio, impedindo que o protagonista Cristiano, interpretado por Francisco Cuoco, se casasse com a vilã Fernanda (Dina Sfat) por enxergar que a relação dos dois configurava bigamia.
Na verdade, os censores estavam vendo, como se diz popularmente, pelo em ovo. Na trama, Cristiano acreditava-se viúvo de Simone (Regina Duarte), que fora vítima de um atentado provocado pelo oportunista Miro (Carlos Vereza). O vilão queria que o amigo se unisse a Fernanda, que era milionária, e assim usufruir da riqueza de ambos.
O plano só não deu certo porque Simone sobreviveu e assumiu outro nome. O capítulo que deu recorde de audiência no Rio e em São Paulo era aquele em que a identidade da protagonista era revelada.
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, conta que apesar da argumentação apresentada de que Cristiano não sabia que estava praticando bigamia, os censores alegaram que o público sabia e que a novela não podia dar esse exemplo.
Em entrevista exclusiva ao UOL, o ex- superintendente de produção e programação da Globo conta os dribles que ele, Janete Clair e o diretor Daniel Filho tiveram que dar na censura para que a novela não mudasse de horário nem fosse interrompida. Leia:
UOL – Como funcionava o processo de produção de uma novela nesse contexto de censura?
Boni –Na época, tínhamos obrigação de apresentar uma sinopse para avaliação da classificação etária, acompanhada de vinte capítulos em texto. Uma vez aceita a indicação, o certificado de censura seria emitido após a apresentação de vinte capítulos gravados e editados em versão final, o que poderia manter ou alterar a classificação inicial. Evidentemente os prazos eram negociados e havia uma pequena margem, mas sempre com risco para a emissora.
Qual era seu papel nesse processo?
O meu papel e das pessoas que trabalhavam diretamente em contato com a censura era tentar ludibriar os censores e conseguir aprovar horário, o conteúdo inteiro, capítulos e cenas. Muitas vezes usávamos o artificio chamado de "pentear", cujo significado verdadeiro era "disfarçar". A minha posição acabou acarretando em 1971 uma investigação do DOPS. Na luta para manter as novelas intactas e o conteúdo preservado, adotamos a técnica de ganhar tempo enrolando a censura com promessas que seriam cumpridas ou não, criando uma cultura de embates sucessivos, avançando e recuando de forma estratégica. Quase sempre não cumpríamos o prometido e renovávamos as promessas. Eu era mestre em assinar documentos que não seriam cumpridos.
Como a censura foi abrandando (ou não) com o enfraquecimento do regime?
Não houve um abrandamento gradativo. Não existe censura gradual. Ou há liberdade de expressão ou não há. A censura não era apenas do ponto de vista de costumes ou de política. Era usada para punir de forma discricionária como o caso de "Roque Santeiro", em que o ministro Armando Falcão resolveu se vingar do ex-amigo Roberto Marinho proibindo a primeira versão.
Que novelas de hoje em dia jamais seriam aprovadas pelos censores e por quê?
As novelas de hoje passariam todas. São superficiais e sem aprofundamento social e político. Uma ou outra palavra seria cortada. Os censores eram técnicos de censura e cortavam o subjetivo, não o objetivo. Além dessa censura, havia uma segunda censura que era a dos militares que exerciam pressão por ouvir dizer. Nesse grupo, incluíam-se diversas senhoras de generais e as famosas "Senhoras de Santana". A igreja, muitas vezes divergindo dos militares da ditadura em alguns campos, atuava como uma terceira censura no sentido moral e religioso, constituindo-se em uma pressão tão grande quanto a censura oficial e a censura militar.
Estou com um documento assinado por você com todos os detalhes da mudança na sinopse de "Selva de Pedra". A censura reclassificou a novela para as 22h no meio da trama e vocês tiveram que matar o romance do Cristiano com a Fernanda. Que tipo de prejuízo isso causou à emissora e em quanto tempo a Janete Clair teve que reescrever a sinopse? Você e ela discutiram o enredo juntos? Como foi isso?
Quando os argumentos falhavam, tínhamos que executar as mudanças necessárias para não sair do horário. O custo das regravações era extremamente inferior do que jogar fora audiência do horário e perder as verbas publicitárias. Muitas vezes as alterações obrigavam os autores a um exercício de criatividade que assustava por ter virado rotina. Em Selva de Pedra, as soluções foram discutidas comigo pela Janete Clair e o Daniel Filho.
COMO PESQUISAR SOBRE CENSURA?
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Basta marcar horário pelo fone 0/xx/61-3344-8242; o Arquivo Nacional fica no Setor de Indústrias Gráficas, Quadra 6, Lote 800, em Brasília
Quando a novela mudava drasticamente, os telespectadores percebiam? Saía na imprensa? Vocês recebiam cartas de reclamação do público?
Não interessava a censura que as mudanças vazassem. Eles não queriam admitir publicamente a ação da censura. Para nós era melhor assim. Podíamos caminhar mesmo que fosse sobre o fio da navalha, e o público não percebia nem reclamava, pois parecia um artificio de dramaturgia dos autores. Só abrimos a boca e denunciamos a censura quando houve a proibição total de uma novela, no caso da primeira versão de "Roque Santeiro".
"Pecado Capital" nasceu meio que a toque de caixa devido à proibição de "Roque Santeiro". No lugar de "Roque Santeiro" entrou uma reprise de "Selva de Pedra". Você pode nos contar como foi "parir" uma novela tão rápido?
A Janete se prontificou a substituir o Dias Gomes, e o Daniel Filho se debruçou no projeto, ajudando na criação da trama que , no início, trazia muitas semelhanças com "Selva de Pedra". O Francisco Cuoco foi mantido. Para evitar a repetição da dupla com Regina Duarte, foi escalada a Betty Faria. Também o tom coloquial foi usado para diferenciar do clima "dark" de "Selva de Pedra". A equipe inteira, diretores, autores, produtores musicais resolveram dar uma resposta a censura e saiu o sucesso Pecado Capital.
Tem um documento dos militares dizendo que o Walter Clark [diretor geral da Globo na época] tinha se comprometido a "prestar serviços ao governo e às autoridades". O que isso queria dizer? Eles pediam favores especiais ou era represália às promessas que vocês não iriam cumprir?
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Documento pedindo informação sobre José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, durante a ditadura militar
O Walter Clark sofreu muitas pressões e tivemos que exibir um editorial diário do regime militarchamado "Ordem do Dia". Era exibido antes do JN, escrito e lido por Edgard Erickssen, um colaborador dos militares. Foi um programete de três minutos imposto pelo governo militar que durou pouco tempo pela sua ineficiência e reclamação do público. O Borjalo [o famoso cartunista Mauro Borja Lopes] fez a logomarca do programa que a censura engoliu: era uma mão com o indicador esticado apontando o título. Todos sabíamos que significava "dedo duro". A outra imposição foi o programa "Amaral Netto". Ele era um deputado federal e repórter de televisão. O programa dele foi exigido para divulgar o então chamado "Brasil Grande", mas o Amaral acabou entendendo que isso não daria audiência e fez um programa no estilo "reportagem-documentário" focado mais na natureza brasileira, inclusive com alguns episódios excelentes. Em nenhum momento eu soube de qualquer outro acerto do Walter com o regime. Mesmo porque em todo o tempo da ditadura a Globo e o dr. Roberto Marinho não conseguiram nenhum canal ou benefício do governo. Todas as frequências da Rede Globo foram adquiridas de outros concessionários. Devido a sua constante e grande audiência, a Globo foi mais visada e mais censurada que as outras. Em alguns momentos, como nas "Diretas Já", houve ameaça de cassação da concessão e somente com a interferência do Roberto Irineu Marinho é que o dr. Roberto resolveu enfrentar o governo. De qualquer maneira, dr. Roberto era anticomunista e sempre defendeu a economia de mercado. Mas jamais defendeu a censura ou o controle dos meios de comunicação, pois a liberdade de expressão era uma das paixões de seu espírito jornalístico, mais forte que seu lado de empresário.
A diretora do observatório da censura da USP nos deu uma entrevista dizendo que sempre houve censura no Brasil. Você concorda com essa afirmação?
Concordo totalmente. A diferença é que a classificação de hoje é meramente indicativa e as emissoras são obrigadas a informar o horário da classificação. Mas há mecanismos para se manter no horário. Na prática, o que deixou de existir, no caso do entretenimento, foi a censura prévia, mas não a censura em si. Já o jornalismo, é bom que se diga está, neste momento, inteiramente livre.
"Selva de Pedra" ganhou um remake em 1986, com Tony Ramos, Fernanda Torres, Christiane Torloni e Miguel Falabella nos papeis de Cristiano, Simone, Fernanda e Miro, respectivamente. Para saber mais sobre essa versão, clique aqui.
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