Opinião: Minha filha tem 3 anos e mal sabe o que é Globo, SBT ou Discovery
Fábio Yabu*
Especial para o UOL
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Divulgação
Imagem do desenho "My Little Pony", disponível em serviços de TV por streaming
Quando tinha 2 anos, minha filha Luna (hoje beirando os 4), me fez uma daquelas perguntas cabeludas que pegam qualquer pai de calça curta: "Papai, o que é TV a cabo?". Depois de pensar um pouco sobre os referenciais que ela já tinha na época, respondi: "É uma Netflix onde só passa desenho surpresa!"
Luna, que desde de que nascera só tivera acesso a desenhos animados via streaming, ficou intrigada com a possibilidade de não saber o que iria assistir a seguir. "E onde tem TV a cabo?". "Na casa da vovó", respondi. Na verdade, na nossa também tinha, mas eu confesso que não sabia qual era o nosso pacote nem por onde andaria o controle remoto da Net, desaparecido havia meses.
E é assim em nossa casa até hoje. Já faz cerca de quatro anos que vivemos na era pós-TV, em que 100% do conteúdo assistido pelas três pessoas que compõem nossa família vem de algum serviço de streaming disponível em nossa Apple TV. Filmes e séries fresquinhos, assistimos via iTunes, às vezes antes da estreia nos cinemas por aqui. Quando a coisa é um pouco mais antiga, o Netflix dá conta do recado. Se é mais ainda, ou se é algo que viralizou na última semana, assistimos no Youtube. Quando minha esposa quis assistir aos jogos da Copa, precisei revirar a casa em busca do bendito controle da Net, porque senão, nem isso, já que futebol não desperta meu interesse (e vamos combinar, não perdi nada esse ano).
É um caminho sem volta, especialmente para a Luna. Graças ao streaming, a pequena tem uma relação completamente diferente com a mídia daquela que eu tinha, ou que suas amiguinhas mais "analógicas" têm. E vai levar esse novo paradigma por toda a vida. Ou você acha que a desculpa do "desenho surpresa" vai colar por muito tempo? Para "pegar" a Luna, os canais – e os anunciantes – primeiro terão que entrar na vida dela, porque até então ela simplesmente passou batido por todos eles, e não faz ideia do que seja uma Globo ou um SBT, e Discovery Kids ela só conhece pela casa da vovó. Talvez hoje Luna seja uma minoria, um ponto fora da curva, mas quão fora? Ainda se assiste a muita TV tradicional no Brasil, mas com a audiência dos canais em queda, e a multiplicação das telas e dos serviços de streaming, quem acha que a geração da minha filha vai consumir TV da mesma forma que seus pais, sentando no horário X para assistir a novela, acompanhando séries dubladas na TV paga ou usando o "Jornal Nacional" como janela para o mundo?
Reprodução Notei que, depois de alguns episódios de 'Pocoyo', ela tinha uma certa tendência a deixar de lado o 'por favor', tão cuidadosamente forjado em seu vocabulário. Não tive dúvidas, 'Pocoyo' caiu e o 'por favor' voltou na hora.
Vai ser uma briga boa, e não tenho como ser imparcial. Na minha opinião, a grande diferença entre a TV tradicional e o streaming é que a primeira pensa no anunciante, e o segundo, no usuário, algo que para mim, como pai, só traz vantagens. O fato de que Luna pode assistir ao que quiser na hora que quiser é uma delas. Mas também é uma meia-verdade. Todas as suas escolhas passam pelo meu crivo e o da minha esposa, algo que seria impossível numa TV aberta ou fechada. Também escolhemos – e limitamos – o horário em que ela pode assistir a desenhos. Na era pós-TV, a tal "programação infantil de qualidade" depende exclusivamente dos pais. Sabemos que teremos muitas quedas de braço para encarar daqui para a frente, mas esse é uma responsabilidade que não pretendemos dividir com nenhuma emissora.
Entre os tais "desenhos surpresa" da TV a cabo, por mais premiados que sejam, muitos são simplesmente inapropriados para a idade da Luna: alguns são para crianças mais velhas, outros, mais novas, e isso é tão problemático quanto. Notei que depois de alguns episódios de "Pocoyo" (cujo público são crianças de 1 a 2 anos), ela tinha uma certa tendência a deixar de lado o "por favor", tão cuidadosamente forjado em seu vocabulário. Não tive dúvidas, "Pocoyo" caiu e o "por favor" voltou na hora. Já algumas amiguinhas mais precoces entraram na onda de "Monster High" (voltado para pré-adolescentes), mas aqui em casa Draculaura e suas amigas de salto plataforma não têm vez. Simples assim.
Ao selecionar a programação de nossa filha, sentamos com ela e discutimos por que esse ou aquele desenho não lhe são apropriados. Eu realmente odeio como a Princesinha Sofia ("Sofia the First" ou "A primeira", apelidada pelos pais americanos de "the worst", ou "a pior") passa seus episódios sendo mimada e malcriada, para apenas no último minuto da história se redimir. Ou seja, a criança passa quase 18 minutos assistindo a maus exemplos (num dos episódios, a irmã Amber, loiríssima, maltrata explicitamente uma menina negra e pobre), e apenas 2 ou 3 com uma conclusão musical de que aquilo não foi uma boa ideia. Mas aí o estrago já está feito. Outro que pinta e borda é o Caillou, típica criança chiliquenta produto de pais sem autoridade. Usamos os poucos episódios que ela viu desses desenhos para mostrar como não se comportar, e então oferecemos os outros que, se não ensinam nada, pelo menos não desensinam.
Na era pós-TV, a tal 'programação infantil de qualidade' depende exclusivamente dos pais. Sabemos que teremos muitas quedas de braço para encarar daqui para a frente, mas esse é uma responsabilidade que não pretendemos dividir com nenhuma emissora.
Entre os programas liberados, estão aqueles que considero inocentes, mas que não subestimam a sua inteligência. Não busco, necessariamente, programas "educativos" – afinal, ela tem pais e escola para isso. O entretenimento, desde que seja respeitoso, é sempre válido. Acho que "My Little Pony" é o melhor exemplo, é um desenho leve, inteligente e visualmente muito bonito. Vez por outra, tento empurrar algumas coisas diferentes e menos "comerciais", como desenhos do Miyazaki, pelo qual ela surpreendentemente não se interessou (talvez seja a idade), e "Kirikou", desenho francês pelo qual se apaixonou.
Outro fenômeno interessante é que, para Luna, não existe essa de desenho "antigo" – pudera, ela está nesse planeta há 48 meses, tem coisas na minha despensa mais velhas do que ela. Com frequência, ela me pede para assistir no Youtube episódios de "She-Ra" e "Sailor Moon" (que ela já sabe procurar sozinha, via busca por voz no iPad), e a única coisa que a fez esquecer a "febre Frozen" foi açúcar, tempero e tudo o que há de bom: as "Meninas Superpoderosas", recentemente adicionadas ao catálogo do Netflix. As defensoras de Townsville conseguiram até desbancar o tema de sua festa de aniversário de quatro anos em janeiro, e inadvertidamente me causaram dois problemas: o primeiro é que, fora do mercado há quase uma década, não existem produtos de decoração de festa das personagens. O segundo é que poucas de suas amiguinhas sabem quem são Florzinha, Lindinha e Docinho.
Isso nos leva ao ponto que considero mais sensível da discussão. Muito tem se falado sobre os impactos que a publicidade tem sobre as crianças, e talvez esse seja o "efeito colateral" mais benéfico da vida pós-TV: Luna simplesmente não assiste a propagandas. Algum dia alguém vai escrever em minha sepultura que eu mesmo ajudei a cavá-la, afinal, eu também tenho um desenho animado na TV, a série "Princesas do Mar". Mas se como profissional eu temo pelo meu emprego, como pai, durmo com a consciência tranquila ao notar que Luna não é uma criança que pede, que vê algo o mercado e quer na hora, nem que se agarra a um produto no shopping e esperneia se os pais não o compram.
Evidentemente, Luna tem seus desejos, mas ela não tem aquela gana em ter o xampu da Elsa, a mochila da Barbie, o notebook da Xuxa e, bate na madeira, qualquer coisa com Patati Patatá. Para minha filha, personagens não são, necessariamente, produtos nem sinônimo de consumo. Eles vivem em lugares encantados como Equestria, Townsville e Arendelle, aos quais pais e criadores devem agradecer por existirem e tornarem os sonhos de nossas crianças mais felizes. É claro que Luna sabe da existência dos produtos inspirados em cada um desses reinos mágicos, ela tem sua coleção de My Little Pony, suas Barbies e Princesas Disney. Mas sua mochila é apenas uma mochila, uma vermelhinha modelo mensageiro que a mãe usava como bolsa do dia a dia. Seus tênis, galochas e chinelos são simples e coloridos, pouquíssimas roupas suas têm personagens e o mais importante, ela sequer sabe o que é um Mc Lanche Feliz, nunca tomou refrigerante na vida e prefere uma laranja lima a qualquer biscoito recheado. Sem dúvidas, as escolhas saudáveis da Luna são influenciadas por nós, mas fica a dica: é muito mais fácil convencer sua filha a comer uma ameixa se não tiver ninguém oferecendo um Toddynho ao mesmo tempo.
Há riscos, também. No meio do oceano de opções que Luna tem ao alcance de seus dedos, ela precisa de nosso olhar e nosso cuidado, e é um trabalho gigantesco ter que navegar junto com ela em meio a Monster Highs, Peppas e Caillous da vida até encontrar algo de qualidade. A cada dia que passa vejo que o excesso de opções só é prejudicial quando se tem falta de filtros. A vida via streaming só fez bem à nossa família, tornou-nos mais unidos e atenciosos com cada escolha feita com e pela Luna. A TV a cabo, quem diria, virou uma espécie de bolinho de chuva: uma lembrança gostosa, pouco saudável e que só encontramos mesmo na casa da vovó.