Sucesso do Carandiru, HQ "O Vira Lata" se transformará em série da Globo
Beatriz AmendolaDo UOL, em São Paulo
Com cenas de sexo explícito, a HQ "O Vira Lata" se tornou símbolo da luta conta a Aids nos anos 1990. Distribuída gratuitamente no presídio do Carandiru, em São Paulo, por conta de uma iniciativa do médico Drauzio Varella, a revista que trazia um anti-herói mulherengo como protagonista chamou a atenção dos detentos para a importância do sexo seguro e os perigos de contaminação trazidos pelas drogas injetáveis. E, mais de vinte anos após a criação do personagem, a história de Paulo Garfunkel e Libero Malavoglia se transformará em série da Globo, ainda sem data oficial para ir ao ar.
Filho de cinco pais de etnias diferentes, o Vira Lata é um ex-detento que luta contra malfeitores no submundo paulistano, enquanto se envolve com belas mulheres. Nas palavras do autor Paulo Garfunkel, o personagem faz aquilo que todos gostariam: "Seduzir quem ele quer e dar porrada em mau-caráter". Após anos de circulação praticamente restrita ao Carandiru – dos 10 mil exemplares impressos, 7 mil iam para o presídio paulista -, o anti-herói teve suas histórias reeditadas em um livro lançado em 2012 pela editora Peixe Grande. A obra chegou às mãos do diretor Luiz Fernando Carvalho ("Meu Pedacinho de Chão"), que se interessou em adaptá-la. Garfunkel então acabou se tornando corroteirista da adaptação.
"Como pai da criança, mãe talvez, qualquer reconhecimento é bom. Ainda mais de uma coisa que escrevi há vinte e poucos anos, você se sente bem. Quando soube que era o Luiz Fernando Carvalho, fiquei muito lisonjeado, porque ele fez 'Lavoura Arcaica, que é um p*** filme", disse Garfunkel em entrevista ao UOL. O autor admitiu que, apesar da animação, também teve receio ao receber a proposta, mas que encara com naturalidade: "É um pouco como um filho. Enquanto você puder acompanhar para ver, para deixar mais fiel à origem, você acompanha. Então claro que fiquei superfeliz, mas com medo".
Misturando live-action e inserções de animação, a série contará a origem do Vira Lata, que foi mostrada na extinta revista "Animal", responsável por publicar a primeira história do personagem, em 1991. "Ele vai combater um grupo de extermínio, tem o lado policial, mas é um momento em que ele está bem desconfortável, descobrindo de quem que ele é filho. É a gênese do herói", explicou o autor. O teor de sexo e violência deve diminuir bastante em relação ao dos quadrinhos: "Tem que tirar a mão. O quadrinho é pornô e cabeças rolam. Mas isso fica mais por conta do diretor e do diretor de arte, foge um pouco da minha mão".
A bandeira do combate à disseminação do HIV, tão forte nas histórias originais, não estará presente na adaptação – mas nem por isso o anti-herói deixará o sexo seguro de lado. "Como são outros tempos, a gente não está abordando a Aids. Mas o Vira Lata faz muito sexo, e sempre tem vários rounds, então haverá várias camisinhas no criado mudo. No gibi, era quase um manual de colocar a camisinha. E claro, como era explícito, a gente vai deixar subentendido na TV. Porque é uma das características do Vira Lata. Se ele não usar a camisinha, isso o descaracterizaria".
O começo
A história de "O Vira Lata" no Carandiru começou com o médico Drauzio Varella, que realizava atendimentos e palestras de conscientização no presídio. Depois de notar que era necessário traçar outras estratégias para chamar a atenção dos presidiários para as campanhas de prevenção contra o HIV, ele cruzou com um dos gibis do anti-herói em uma banca de jornal, interessou-se pelo conteúdo e firmou parceria com Paulo Garfunkel e Libero Malavoglia.
"O Drauzio dava palestras sobre Aids e não ia ninguém, porque era voluntário", relembrou Malavoglia, responsável pela arte dos quadrinhos. "Aí ele mudou a estratégia. Falou 'quem for na palestra, vai ver filme de sacanagem depois', então lotou. E quando ele chamou a gente, foi em função de ter percebido isso. Ele conhecia a revista, que tinha um conteúdo erótico muito forte, e chamou a gente pra acentuar isso. Nossa arma era o erotismo, a pornografia mesmo, mas convocada para uma boa causa, que era a saúde dos presos, para os caras não transmitirem o HIV lá dentro".
A iniciativa, que começou de forma extraoficial, deu certo e a HQ caiu no gosto dos presidiários. "Geralmente, o que não vingava na cadeia ia para o lixo, porque lá as pessoas não tinham espaço para guardar coisas. A gente via que era aceito pelo número de revistas descartadas, que era mínimo", contou o desenhista. Na opinião dele, o conteúdo erótico foi um dos grandes responsáveis pelo sucesso da história, ao lado da preocupação em gerar identificação com os detentos.
"As histórias tinham o cuidado de serem do universo deles. A gente fez uma reunião no começo e eles falaram 'não vem com historinha inventada, porque a gente é do crime'. E tinha um lado dos presos que era todo maria-mole. Eles eram superemotivos em relação à família, então a história também puxava para esse lado. Eu ainda me preocupava em desenhar paisagem, porque o cara está preso, aí ele poderia ver o rio Amazonas, o pôr do sol. Mas o principal truque era as meninas que apareciam desenhadas, o conteúdo erótico".
E foi justamente o forte conteúdo sexual que permitiu que o uso da camisinha fosse estimulado de uma maneira mais atrativa do que aquela presente nos tradicionais folhetos de saúde, de acordo com Paulo Garfunkel. "O combate à Aids deu o salvo conduto para essa sacanagem toda. Porque é um gibi pornô. Como o Drauzio fala, é a primeira revista de sacanagem com supervisão científica. E é verdade. A gente optou por não fazer uma coisa didática. No meio da transa, a camisinha é erotizada, a menina põe com a boca. Não é aquela coisa 'para tudo, vamos por a camisinha'".
Para o autor, a distribuição da história teve resultados positivos. "O Vira Lata salvou vidas? Acho que salvou. Ajudou os caras a refletirem na hora de compartilhar uma seringa. Não tinha um julgamento moral, nem do Vira Lata nem do Drauzio, do tipo 'para de tomar droga'. Só não compartilha a seringa. Não aguenta segurar a onda de cara limpa? Não estou jugando, só não compartilha a seringa. Não é imoral, é amoral. Não está julgando ninguém. Cada um faz o que consegue".