Longe da TV, Lima Duarte se sente preterido pela Globo e espera papel ideal
Amanda Serra*Do UOL, em São Paulo
Afastado da televisão desde "Araguaia" (2010), Lima Duarte, 84 anos, vive sozinho em seu sítio no interior de São Paulo e não costuma participar de eventos ou dar entrevistas. Nesta terça-feira (14), depois de uma rápida conversa por telefone, o ator recebeu a reportagem do UOL em seu apartamento na capital paulista, onde guarda relíquias da carreira, como fotos, discos e filmes antigos. Ao longo de três horas de conversa, o ator disse não saber qual é sua posição na Rede Globo – apesar de ter contrato até o fim de 2015. Reconheceu que a variedade de personagens para sua idade diminuiu e revelou que ainda aguarda o papel ideal para de despedir definitivamente da TV.
Vestindo uma camiseta estampada por uma pintura do francês Claude Monet, um short esportivo e um chinelo acompanhado por um par de meias, Lima ainda admitiu que não é uma pessoa fácil para conviver e não poupou críticas a colegas de trabalho e à própria emissora. "Sou muito chato. Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim", disse o ator, parafraseando um trecho do poema "Eu que me Aguente Comigo", de Fernando Pessoa.
"É muito difícil para eu trabalhar. Acho que os diretores e autores têm muito medo de mim, porque sei muita coisa. Vi muita coisa, fiz muita coisa. Quando estou dentro do estúdio, fico fingindo que não sei", disse Lima, cercado de imagens que contam parte de sua história. Nas paredes há fotos de seus contemporâneos Paulo José e José Wilker, homenagens dos diretores Carlos Henrique Schroder e Boni e até o bigode usado por Sassá Mutema, seu personagem em "O Salvador da Pátria" (1989), colado ao lado de um bilhete da atriz Maitê Proença (seu par romântico na trama) com a mensagem "Te amo".
Nos últimos anos, o ator foi convidado para as novelas "Salve Jorge", de Glória Perez, "Meu Pedacinho de Chão", de Benedito Ruy Barbosa, e "Boogie Oogie", de Rui Vilhena. Disse que chegou a experimentar o figurino do personagem Coronel Êpa [interpretado por Osmar Prado], mas que sua participação foi vetada pelo autor antes da estreia. "Eu não disse não para 'Meu Pedacinho'. 'Pedacinho' que me disse não."
Em "Boogie Oogie", Lima contracenaria com a atriz Regina Duarte e viu na oportunidade um jeito de reviver Sinhozinho Malta e Viúva Porcina, casal ícone de "Roque Santeiro" (1985), mas desistiu assim que a parceira declinou o convite. "Só faria sentido fazer essa novela se fosse com ela [Regina]. Tudo que faço agora dá impressão que é a última coisa que vou fazer na vida, então quero que seja algo especial. Não vou fazer o galã da Isis Valverde [no ar em 'Boogie Oogie'], da Bruna Marquezine. Não dá", afirmou.
Nostálgico, ele costuma acompanhar a programação televisiva para matar a saudade e também exercitar seu senso crítico. "Assisto a televisão só para ver os colegas, mas não acompanho novelas. Esses dias vi que o Paulo Betti está fazendo um gay [Téo Pereira de 'Império'], mas achei horrível. O gay já é uma imitação da mulher, aí o papel do Betti é a caricatura da caricatura", opinou o ator, que revelou a vontade de interpretar um homossexual nas telinhas. "Faria um velho homossexual, usaria um anelão assim no dedo", disse gesticulando.
Futuro
Com liberdade em poder escolher o tipo de trabalho que quer fazer e podendo viajar até duas vezes ao ano sem ter de pagar passagens aéreas – uma regalia da Globo aos atores de seu porte –, Lima reconhece que os tempos mudaram e diz não saber qual é sua função na empresa da família Marinho.
"Tenho 43 anos de casa e muitas coisas mudaram lá dentro. Para dizer a verdade, nem sei qual é minha posição dentro da Globo. Acho que eles não sabem que faço parte do elenco. Eles são ótimos do ponto de vista profissional. Me pagam bem, até mais do que mereço, gostam muito de mim... Mas outro dia fiquei deprimido ao saber que chamaram vários atores para conversar, Juca de Oliveira, Antônio Fagundes, mas não chamaram a mim. Mas no hate feelings [sem sentimento de ódio, em tradução livre]", confidenciou Lima, automaticamente mudando de assunto e contando que foi convidado para gravar quatro filmes no próximo ano – em 2015, estreia "Deserto", dirigido por Guilherme Weber e filmado no início do ano na Paraíba.
Há cerca de três anos, um pouco antes de renovar seu contrato com a emissora global, o ator pediu para deixar de ser funcionário. "Eles quiseram renovar por mais quatro anos, acho que estão esperando que eu morra neste período", afirmou ele, contando ainda que horas antes da entrevista tinha acabado de fazer um check-up. "Sou muito saudável, felizmente".
Solitário
Solteiro depois de cinco casamentos, o ator tem quatro filhos – Debora, Monica, Julia e Pedro –, cinco netos e quatro bisnetos e prefere viver sozinho em seu sítio no interior de São Paulo. "Tenho uma vida simples. O que ganho é para os filhos, afinal vai ficar tudo para eles." Amigos são "uma coisa complicada". "Meus amigos eram os camareiros, os contrarregras", contou. Avesso à tecnologia, que define como "ditadura dos botões", dedica o tempo livre a ouvir música, ler, caminhar na mata, beber vinho, viajar – França e Holanda são os lugares preferidos – e assistir a filmes.
Com 59 novelas e mais de 30 filmes no currículo, o ator mantém vivas suas lembranças e histórias revendo sua atuação como o rude Getúlio, personagem que não aceita que os tempos mudaram, no filme "Sargento Getúlio" (1982), inspirado no livro homônimo de João Ubaldo Ribeiro. "É a melhor coisa que eu fiz de longe, disparado. Uma compreensão tão exata do personagem, um olhar profundo sobre o ser humano. É muito difícil encontrar isso no cinema brasileiro, modéstia à parte", justificou, enquanto se revia no vídeo ao mesmo tempo em que reinterpretava o texto do filme no meio de sua sala.
O ator, que estreou na TV em 1950 e deu vida a personagens como Hamlet no teatro, ainda sonha em interpretar MacBeth e Rei Lear, também de William Shakespeare. "Rei Lear é um personagem que só eu poderia interpretar. Porque é importante que ele tenha 80 anos e um vigor que nenhum ator no Brasil tem", gabou-se, mesmo reconhecendo que o pique é outro agora. "Com 84 anos a dinâmica muda muito".
"Sou um ator visceral, apaixonado, delirante"
O veterano reclamou da ausência de papéis para idosos nos folhetins e criticou a insistência em mostrar as pessoas mais velhas com perfis cômicos. "A velhice é uma barra, uma devastação mesmo. Esses filminhos americanos mostram velhinhos como engraçadinhos, mas a melhor idade é execrável. É o fim da vida. Tem que dar um enfoque legal da velhice. Tem que falar da velhice com amor, ternura e não como engraçadinho".
"Talvez tenha ficado mais exigente. Quero fazer coisas que sejam para mim, não quero forçar a mão, ficar fazendo gracinha. Sou um ator visceral, apaixonado, delirante. Onde eu puder aplicar as vísceras, vou gostar de trabalhar", completou.
Com o testamento pronto, Lima parece não temer a morte ao olhar para um quadro exposto em sua sala, que reúne globais como Ary Fontoura, Carlos Eduardo Bouças Dolabella (morto em 2003), Bibi Vogel, Jô Soares e Francisco Cuoco. "Essa foto é de quando gravamos a primeira vinheta do especial de fim de ano da Globo. Difícil é contar os mortos".
*Colaboração Marcela Ribeiro