Glauco, de "América", pode ganhar algemas antes mesmo de comprar alianças A um mês do término de "América", quando sua confusa trama finalmente começa a se resolver, o interesse pelas soluções que virão é um tanto prejudicado pela falta de substância dos personagens da novela.
De fato, como já escrevi anteriormente, a maioria dos personagens tem personalidade tão ralinha e se comporta de maneira tão errática que, se a autora Glória Perez decidisse simplesmente sortear quem fica com quem, poucas combinações pareceriam incompatíveis. Nesse contexto, uma das subtramas cujo desfecho desperta mais interesse, por envolver um dilema e dois personagens mais densos que a média da novela, é o turbulento final do casamento do empresário Glauco Simões (Edson Celulari) com a socialite cleptomaníaca Haydée (Cristiane Torloni). Tendo descoberto, no mesmo dia, que Glauco a traía com sua amiga Nina (Cissa Guimarães), e que enganava ambas com a ninfeta Lurdinha (Cléo Pires), Haydée ficou duplamente furiosa, mas logo percebeu que, entre os dois incômodos, o segundo era muito menos tolerável. Afinal, além de traída, Haydée se sentiu humilhada ao ver Glauco circular por Miami e pelo Rio de Janeiro, entre conhecidos do casal, vestido de garotão e ao lado de uma moça que tem idade para ser sua filha.
VINGANÇA Daí veio o desejo de retaliação, que explica porque Haydée, embora tenha garantido um futuro feliz e mortalmente tedioso nos braços do aborrecido Tony (Floriano Peixoto), não desiste de atazanar a vida do futuro ex-marido. Haydée agora está chantageando Glauco, exigindo que ele se afaste de Lurdinha, para não denunciar suas falcatruas financeiras e levá-lo à cadeia. O interessante nessa história é que, em toda sua imaturidade e loucura, Haydée consegue ser coerente, enquanto uma personagem como Sol (Débora Secco), de concepção bem mais simples, se afunda em contradições. A ilustrar tal coerência, houve a cena do último sábado (1º/10), em que Haydée se justificou candidamente para Tony, dizendo não ter vergonha de sentir rancor e querer vingança. De quebra, o diálogo também mostrou que nem tudo em "América" é descartável, e que Glória Perez sabe compor textos memoráveis. O personagem de Glauco, diferentemente de Haydée, não traz tudo em um único pacote bagunçado: ele funciona quase como dois personagens independentes --um inverossímil e outro verdadeiro.
PESSOA JURÍDICA
Enquanto homem de negócios, Glauco padece da inconsistência comum aos de sua espécie que aparecem em novelas: pouco vai à empresa, não é visto trabalhando, a secretária não lhe transmite um só recado profissional, os subalternos não despacham com ele. Isso faria sentido se Glauco tivesse função decorativa, se fosse um inútil de quem a empresa não precisa para nada... Mas não é isso que a trama sugere. Assim, parece que Glória Perez compartilha com outros novelistas o desinteresse pelo funcionamento de uma empresa de verdade, e pela rotina de um executivo do mundo real. PESSOA FÍSICA
O lado verossímil de Glauco é o de "pessoa física". Não é nada irreal ele ser omisso com a filha, negligente com a esposa-objeto, muito menos manter Nina em banho-maria por vários anos, na esperança de que ele se divorciasse para assumi-la. Tampouco é absurdo um homem de sua idade se encantar com uma jovem bonita e brejeira, mudar o visual para ficar compatível com o dela e passar ridículo por causa disso. Talvez não por acaso, o grande exagero desse rejuvenescimento tem de novo a ver com a questão profissional, quando Glauco abandona o terno e a gravata e aparece na firma em mangas de camisa, usando jeans e bolsa. Á parte os instintos "galináceos", não se chega a seu nível de prosperidade sem um mínimo de discernimento e profissionalismo. De qualquer forma, os senões de Glauco não tiram o interesse por seu conflito com Haydée. Afinal, a esposa insegura e dependente finalmente encostou na parede o marido egoísta e presunçoso e, desta vez, parece que ele não tem como ganhar tudo. E, se tentar ficar com Lurdinha, pode ganhar um par de algemas antes mesmo de comprar o de alianças.
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