"Sem material de arquivo, ninguém iria acreditar em 'Narcos'", diz Padilha
Helena Wöhl Coelho
Deutsche Welle (DW)
"Um realismo mágico". É assim que o cineasta brasileiro José Padilha (de "Tropa de Elite") descreve a história do narcotraficante colombiano Pablo Escobar, retratada na esperada série "Narcos". A produção da Netflix, que tem dez episódios dirigidos por Padilha, estreou na sexta-feira (28).
Responsável por introduzir a cocaína nos Estados Unidos, Escobar se tornou um dos homens mais ricos do mundo entre as décadas de 1980 e 1990, e chegou a aparecer na lista de bilionários da revista Forbes. Na série, o chefe do cartel de Medellín é interpretado pelo ator Wagner Moura.
Mesclando dramaturgia e documentário, Padilha mostra um recorte da política regional da América Latina. "Tem coisas que só acontecem aqui", disse em entrevista à DW Brasil.
Em estreia em serviços de vídeo por streaming, o diretor afirma que as novas plataformas dão mais liberdade criativa e abrem espaço para um "renascimento do cinema de autor."
Deutsche Welle: Em uma alusão a Gabriel Garcia Márquez, você abre a primeira temporada de Narcos com a frase "há uma razão para o realismo mágico ter surgido na Colômbia". Como esse realismo mágico se manifesta na série?
José Padilha: Eu sempre fui fã do Gabriel Garcia Márquez. Essa inserção de elementos que, teoricamente, são irreais ou mágicos numa narrativa real sempre me interessou. E, para mim, isso é algo que existe na história e na política da América Latina em geral. Tem coisas que só acontecem aqui. A trajetória do Pablo Escobar, de fato, tem essa dimensão difícil de acreditar. Se você imaginar que um narcotraficante contratou um grupo de esquerda - o M19 - para invadir o Palácio da Justiça, destruir provas contra ele, sequestrar juízes... é uma coisa de maluco! Na Colômbia, quando você fala em realismo mágico, os colombianos dizem: "Olha, realismo mágico para os outros. Para nós, é documental." Por isso que eu usei material de arquivo na série: se eu não contasse a história por material de arquivo, as pessoas não iriam acreditar.
Seus filmes sempre tratam de questões sociais e políticas. O que te moveu em 'Narcos'? Qual é a mensagem central?
Eu não sei se eu chamaria de mensagem. Eu tenho problema com o termo mensagem porque ele dá a entender que eu sei alguma coisa. Eu, na verdade, me interesso por como as coisas funcionam. Eu não acredito em ideologia. Eu não acho que o marxismo explique os fenômenos sociais, nem que a Escola de Chicago explique os processos econômicos. Eu simplesmente não acho que existam boas teorias sobre os processos sociais. Eu acho que o máximo que você pode fazer é olhar para um fenômeno restrito dentro de um contexto histórico e tentar explicar como ele funciona. Quando eu exponho a dinâmica do tráfico de cocaína, como ele começou e qual foi a reação dos Estados Unidos, eu procuro ver o que existe nesse processo limitado. E que talvez nos ensine alguma coisa.
E o que 'Narcos' nos ensina?
'Narcos' mostra a opção feita pelos EUA de combater as drogas atacando a oferta. Quando você entende a luta contra as drogas dessa forma, você necessariamente a transforma numa questão policial, uma questão militar. Você poderia fazer uma política de combate com foco na demanda, em quem consome a droga. Essa seria uma abordagem social e de saúde pública. Mas esse não foi o enfoque do país: não existe um enorme esforço de conscientização, não existe um aparato legal feito para flexibilizar o consumo de drogas, não existe uma rede massificada de ajuda aos viciados. Em vez disso, o que se vê em Narcos? Os EUA vão lá, fazem uma guerra na Colômbia, matam o Escobar. Antes de os EUA pegarem o Escobar, o tráfico de drogas já saiu de Medellín e foi para Cali. Aí já tem outro cara no lugar do Pablo Escobar. Quando o pegam, o tráfico vai parar na mão das FARC. Quando pegam as FARC, vai para o México. O que se deduz disso? Que uma política de combate às drogas que se concentra apenas na oferta cai num drama recorrente. É uma guerra que nunca acaba, porque a demanda continua lá.
'Narcos' é uma série feita para a Netflix, que é um serviço de streaming. Esse é um modelo de comercialização ainda relativamente recente. Como você vê essa nova estruturação da indústria cinematográfica?
Eu acho que a indústria do streaming vai ter um papel cada vez mais importante no audiovisual, especialmente do ponto de vista do produtor de conteúdo. A lógica de streaming é diferente da lógica das novelas ou dos filmes de estúdio. Se eu faço uma novela, ou um filme de estúdio, essas produções têm que dar certo. Se a novela não der certo, a televisão não vende anúncios. Os executivos desses meios são conservadores, porque todos os produtos têm que dar lucro. Já com a Netflix, a lógica é outra. A Netflix tem assinantes que pagam um valor mensal, independentemente do que escolherem assistir. A finalidade do serviço não é fazer com que um filme específico tenha resultado. O objetivo é macro: é fazer com que a totalidade dos filmes seja interessante para o assinante. Isso dá mais liberdade criativa.
E que perspectiva isso traz para a produção audiovisual?
Na minha opinião, o streaming vai resultar no renascimento do cinema de autor. E eu estou dando a opinião de alguém que fez tanto filme de estúdio grande, como o Robocop, quanto, agora, uma série grande de streaming. A minha impressão é que, com a entrada de plataformas no mercado, como a Amazon e a Netflix, veremos a volta do cinema de autor.